Análise acerca da responsabilização da figura do Terceiro Cúmplice, tendo como fundamento a interferência danosa em relação contratual alheia.
CONTEXTO HISTÓRICO
Em matéria contratual são conhecidos como princípios clássicos, (i) autonomia privada ou da vontade; (ii) obrigatoriedade ou intangibilidade do conteúdo do contrato e (iii) relatividade.
O princípio da autonomia da vontade, melhor designado modernamente como autonomia negocial, informa que será dada às partes integrantes do contrato a possibilidade de livre disposição sobre seus próprios interesses, conferindo ampla liberdade para definição do alcance do objeto principal do contrato, liberdade estendida ao trato de elementos secundários, embora não menos importantes, como a definição de prazos para cumprimento das obrigações assumidas, eleição de foro, cláusulas que impõem responsabilização por eventual inadimplemento pelas partes, entre outros.
Quanto ao princípio da obrigatoriedade – em expressão do latim: “pacta sunt servanda” – tem-se a máxima de que o contrato faz lei entre as partes, ou seja, uma vez firmado, obriga ao cumprimento nos exatos termos avençados. Porém, a possibilidade de alteração das circunstâncias do momento da contratação em ocasião posterior, notadamente ao tempo do cumprimento das obrigações contratualmente previstas, originou teorias como a da imprevisão e da onerosidade excessiva que atualmente são aplicadas com a finalidade de propor uma mitigação da interpretação mais rigorosa do princípio em questão.
Por fim, o princípio da Relatividade que na abordagem clássica tem a finalidade de restringir os efeitos do contrato apenas e tão somente àquelas partes que se vincularam por meio de compromisso assumido à uma prestação em troca da respectiva contraprestação, os contratantes.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, período histórico com predominância do pensamento liberal, individualista e patrimonialista, esses princípios sustentaram uma grande relevância conferindo, ao contrato status de manifestação máxima da autonomia privada, num contexto de Estado mínimo.
Em pleno século XX, diante da crise do modelo individualista imposta em razão de acontecimentos como a 1ª e a 2ª guerras mundiais, novos princípios foram construídos, sob a égide de valores solidaristas. Assim, operou-se mudança sensível no decorrer dos anos em relação à interpretação dos princípios contratuais, em especial, para este estudo, acerca do princípio da relatividade, terreno onde bem se localiza a figura do Terceiro Cúmplice.
A promulgação da Constituição Federal de 1988, é considerado um marco para redefinição dos paradigmas interpretativos dos princípios contratuais, na medida em o texto constitucional prevê novos princípios, quais sejam, Boa-fé Objetiva, Função Social do Contrato e Equilíbrio Econômico, refletindo o momento de ascensão de um sentimento de solidariedade social cada vez mais presente.
Acompanhando esta tendência de revisão interpretativa e consequente aprimoramento da sua aplicação no caso concreto, novo sentido conferido à relatividade, passa a ser orientado pelo princípio da função social do contrato, previsto em norma infraconstitucional a partir da entrada em vigor do Código Civil de 2002, redação do artigo 421, “Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.”
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Na esteira de novo paradigma interpretativo, o princípio da função social do contrato torna impossibilita o estabelecimento de pactos que venham a prejudicar a coletividade, bem como a particulares, proporcionando uma interação harmônica nas relações contratuais internas e externas tendo como um de seus importantes objetivo a ordem social.
Nas palavras de Tereza Negreiros, “…o princípio da função social dos contratos aprofunda os questionamentos à ótica individualista, compondo um aspecto a mais da complexa noção de abuso da liberdade contratual”. (Negreiros, Tereza, 2006, pag. 2007)
Não se deve, porém, interpretar a mitigação do princípio da relatividade pela função social do contrato como forma de estender os efeitos dos contratos a terceiros, de forma irresponsável. No Brasil, legislação infraconstitucional ainda sob a égide do Código Civil de 1916, previu o dever de abstenção de terceiro nas relações civis, sob pena de que eventual interferência seja por ação ou omissão que, viesse a ocasionar prejuízo, pudesse ensejar obrigação de reparar o dano causado, “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
O TERCEIRO CÚMPLICE E A RESPONSABILIDADE POR INTERFERÊNCIA DANOSA
O direito brasileiro contempla a possibilidade de responsabilização civil em face da chamada interferência danosa, situação verificada quando, havendo um vínculo contratual entre determinadas partes, um terceiro venha a interferir no acordo provocando a dissolução contratual e consequentemente causando prejuízo às partes. Nestas hipóteses, há a imposição de verdadeira obrigação negativa, em que orientado pelo princípio da Boa-fé Objetiva, um terceiro se obriga a abstenção de qualquer conduta lesiva às partes contratantes, de forma a preservar o cumprimento das obrigações assumidas conforme pactuado.
Também conhecida pela designação, tutela externa do crédito e tutela aquiliana do credor contra terceiros, tal mecanismo jurídico pretende promover a responsabilização daquele que viola direitos de crédito alheio mediante interferência em relação contratual pré-existente. Tal violação, pode ser verificada nas hipóteses em que há celebração de novo contrato com o devedor de obrigação anteriormente assumida e/ou prática de ilícito em face da pessoa do devedor ou do objeto da prestação, causando assim a impossibilidade de cumprimento da obrigação.
Há, portanto, uma releitura do princípio da relatividade, sob a ótica de aplicação de interpretação da função social do contrato, uma vez que o terceiro totalmente estranho à relação contratual não poderia deixar de responder pelos danos causados em razão de novo acordo com uma das partes, tendo levado ao inadimplemento de obrigação anteriormente assumida por uma das partes, quando do julgamento do caso concreto, em perfeita conformidade com o entendimento doutrinário e jurisprudencial.
A busca pela responsabilização do terceiro deve, porém, deve se pautar com base na verificação de alguns requisitos, estabelecidos em sede doutrinária. São eles:
Existência dos elementos que caracterizam o ilícito (Culpa, Nexo de Causalidade e Dano);
Conhecimento pelo terceiro da existência do crédito alheio;
Prática do ato comissivo pelo terceiro, consubstanciado na celebração de contrato incompatível com o devedor, ou outro ato que interfira no cumprimento das obrigações pactuadas.
Inicialmente, pretende-se a responsabilização do terceiro de acordo com a previsão constante do Art. 186 do Código Civil, Neminen Laedere, com base na comprovação da ocorrência de dano causado em virtude de violação de direito. Assim, presentes os requisitos para responsabilização com base na prática de ato ilícito conforme preceitos estabelecidos em lei, tem-se verificado um dos requisitos.
O terceiro será responsabilizado não apenas por ter contratado com o devedor de uma obrigação assumida em outra relação contratual pré-existente. A doutrina estabelece que o terceiro precisa necessariamente ter conhecimento da existência do crédito alheio que será prejudicado por sua ação voluntária e, ciente, mesmo assim haver contratado com o devedor de forma a produzir um prejuízo aos contratantes.
A legislação brasileira não foi omissa ao tratar as questões de ilícito civil, aplicáveis a tema. O Código Civil prevê ainda nos artigos, 187 e 942, § único, hipóteses responsabilização, a saber:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.
Em relação à natureza jurídica da responsabilização do terceiro, a doutrina tem posicionamento majoritário no sentido de que a responsabilidade é extracontratual.
Vale destacar que, a responsabilidade entre os contratantes será contratual com base no princípio da boa-fé objetiva, notadamente em observância de suas funções criadora e limitadora. A função criadora do princípio da boa-fé objetiva prevê a obrigação de se observar deveres anexos àqueles estabelecidos no pacto. E sua função limitadora impede os contratantes de se beneficiarem na relação contratual, mediante o abuso de direito.
No entanto, no caso da responsabilização do terceiro, tendo interferido na relação pré-existente e causando prejuízo, estaria reconhecida sua responsabilidade extracontratual. Tal responsabilidade encontra seu fundamento no princípio da função social do contrato. Tendo este princípio como filtro interpretativo, do ponto de vista de sua aplicação, o contrato é considerado um fato social que, embora tenha seus efeitos imediatos restritos às partes contratantes, terá também uma repercussão na sociedade, na medida em que o ordenamento jurídico brasileiro não admite o abuso de direito e atribui valor a uma paz social adquirida com o êxito nas relações contratuais, inclusive.
DA JURISPRUDÊNCIA APLICADA
Em sede jurisprudencial, variadas são as situações em que foram reconhecidas a responsabilidade com base na tutela externa do crédito. Para este estudo, destacam-se dois casos de grande repercussão sobre o tema.
O julgamento da Apelação Cível 0036824-86.2019.819-0001, apresenta um caso bastante conhecido de responsabilização do terceiro por interferência danosa em relação contratual pré-existente, em decisão proferida pelo TJRJ.
A discussão ocorreu em torno de direito de exclusividade estabelecido contratualmente para exploração de marca de combustível.
Igualmente, no TJSP há julgados, em especial Apelação nº 0008756-89.2014.826-0201, caso rumoroso envolvendo colheita de safra agrícola, versou sobre o tema da tutela externa do crédito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hodiernamente, tomado como verdadeiro fato social, o contrato interpretado tendo-se em vista o princípio da função social, tem relevante impacto na vida da sociedade contemporânea. O desenvolvimento das relações humanas acarretou no surgimento de diferentes tipos de contratos, sejam nas relações civis, de consumo, empresariais e mais recentemente de licença de uso de software, principalmente ligados ao entretenimento. É, portanto, inegável a necessidade de se criar mecanismos de proteção das relações pactuadas entre os indivíduos em geral.
Em face de uma ausência de normas e princípios que visem a proteção às relações contratuais, se verificariam ações, as mais diversas, direcionadas à produção de prejuízos sem a devida tutela estatal. Em um estado de verdadeira anomia, o avanço dos atos ilícitos estaria potencializado pelo desmoronamento das normas sociais de referência.
O direito brasileiro possui regras de responsabilidade revestidas de grande efetividade, tendo em vista que podem ser adotadas de forma ampla para resguardar as mais diversas relações obrigacionais que um contrato faz surgir.
À luz dos novos princípios contratuais, notadamente a função social do contrato em contraponto à relatividade, verifica-se premente necessidade de utilização dos diversos preceitos legais e das normas constitucionais para conferir maior efetividade aos contratos celebrados, de forma a construir verdadeiramente relações impermeáveis às mais variadas tentativas de interferência danosa por terceiros.
A teoria do terceiro cúmplice é produto de desenvolvimento doutrinário capaz de a um só tempo proteger a relação contratual entre particulares, como também promover, com base na solidariedade social, segurança jurídica na medida em que impõe ao terceiro o dever de abstenção, não interferência, uma verdadeira obrigação negativa que tem vedada a possibilidade de imiscuir-se na relação contratual interna, a fim de obter algum proveito mesmo que para tanto, venha a causar às partes contratantes prejuízo em alguma medida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NEGREIROS, Tereza. Teoria do Contrato: Novos paradigmas. 02ª Edição. São Paulo. Renovar: 2006, 544 p.
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